Beta Boechat: O que sua ignorância não te deixa ver sobre o mundo?
Crianças no Tiktok geram reflexão após comentários sobre a África
No final de novembro, um vídeo da professora mineira Lavínia Rocha viralizou pelos TikToks. Em cima de um palanque, em uma sala de aula para crianças do 5º ano, a professora vai até o quadro e escreve em letras garrafais a palavra África. Ao retornar o olhar para os alunos, Lavínia levanta o questionamento:
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“Quando eu digo a palavra África, o que vocês pensam?”
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As respostas começam a brotar na turma: “Pessoas escravizadas!”, responde o primeiro. “Pessoas magras”. “Pobreza”. “Pessoas doentes” “Pessoas negras” “Pessoas sem lar?”
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Um dos meninos se explica: “Professora, a senhora sabe por que eu disse pessoas doentes? Porque toda vez que eu vejo Discovery, tem sempre uma propaganda que aparece cheia de crianças doentes.”
O vídeo corta. No topo, é possível ler o título “depois do capítulo”, e a cena segue. A professora está novamente no palco, novamente com a palavra “África” escrita no quadro, mas agora com outra roupa, indicando ser um novo dia.
“Eu vou perguntar de novo. Se eu falar ‘África’, o que vocês imaginam?”
“Que eles sabiam muito de agricultura” “É rica em sal, ouro!” “Resistência e cultura” “Capoeira” “Rio Nilo, Egito, Nigéria, Tanzânia” “Os Iorubás!” “Marrocos, Camarões, Gana, Benin, Togo” “Qual o nome daquele que criou os seres humanos… Oxalá!” “Nanã, Candomblé também” “Pente garfo!”
Eis que uma das alunas puxa da memória: “Fessora, a senhora lembra do quadro que a gente fez? Tinha só um tiquinho de coisa, olha só o tantão de coisa que tem agora.”
Com um sorriso no rosto, a professora completa: “Olha como o é que o conhecimento faz a gente mudar a imagem das coisas. Antes, vocês tinham uma imagem desse tamanhozinho, e ainda negativa! Agora, virou desse tamanhozão”.
Essa experiência, além de sutilmente arrebatadora, me fez lembrar de um outro tópico viral entre a ala mais nerd da internet: o efeito Dunning-kruger. A primeira vez que ouvi falar dele, um mundo novo se abriu na minha frente. Publicado em 1999, depois de um longo estudo feito na universidade de Cornell, Justin Kruger e David Dunning mostraram um dos vieses cognitivos que, na minha opinião, baseia grande parte dos debates atuais, tanto na internet quanto fora dela.
O efeito Dunning-Kruger é o viés cognitivo que mostra que, quanto menos uma pessoa sabe sobre um assunto, mais ela superestima seu conhecimento sobre aquele tópico. Explico com o dedo na ferida: a falta de conhecimento profunda sobre economia ou política, por exemplo, é a grande culpada pelas caixas de comentários da rede estarem inundadas de especialistas de conclusões óbvias e lugares comuns. O pouco conhecimento que essas pessoas têm desses assuntos as fazem acreditar que aquele pouco já é suficiente para solucionar de forma fácil e óbvia qualquer problema que estudiosos estão há décadas tentando solucionar.
Esse viés, à primeira vista contraditório, cria um efeito secundário curioso: seu entendimento mostra que uma das melhores formas de julgar se uma pessoa sabe muito sobre um assunto é descobrir o quanto ela tem consciência do que ela não sabe sobre aquele mesmo assunto. Não adianta só não saber. Ela precisa saber listar umas 5 ou 6 coisas dentro daquele assunto que ela poderia entender melhor ou se aprofundar mais.
Essa consciência, que gera um sentimento pronunciado de humildade, só existe em quem se aprofundou o suficiente para entender o quanto não sabe. Para quem só ficou na superfície, estes questionamentos não aparecem, e o ego de supostamente saber tudo e ter todas as soluções, floresce em cada um dos tweets enviados na rede do passarinho. Quem sabe mesmo, costuma saber que as coisas são mais complexas do que parecem e não saem resolvendo o problema do mundo em um parágrafo. Inclusive, é daqui que deriva outro tópico pop: a síndrome do impostor. Ou você nunca notou que essa síndrome só aparece pra quem realmente sabe do que está falando?
Experimentos como o da professora Lavínia e o efeito Dunning-Kruger nos ajudam a analisar o mundo de hoje. São ótimos para nos fazer perceber que, tudo que achamos sobre o outro, sobre a situação do país, ou da realidade de um continente nada distante como o africano, partem do nosso conhecimento (ou sobre a falta dele). Conceitos como “lugar de fala”, que tanto se popularizaram nos últimos anos, tentam trazer o olhar para esse lugar. Não é e nunca foi sobre quem pode ou não pode falar, mas o quanto é necessário se perceber de onde saem os discursos e decisões que tomamos como verdades inquestionáveis. Como direcionamos nossa vida a partir de equívocos e ignorâncias pelo simples engano de que já sabemos o suficiente para julgar. Como podemos diminuir a dor de grupos que não entendemos só porque aquela dor não dói na gente. Como podemos tomar como besteira ou “mimimi” a reclamação daquilo que a gente não vive.
Por que valorizamos e sabemos de cor o nome de diversos deuses do panteão grego, mas ignoramos o africano? Que visões de mundo, que ignorância carregamos, pra tomarmos isso como natural? Ou você acha que enaltecer a cultura branca e demonizar a cultura negra não é parte fundamental do racismo?
Talvez, parte do que achamos sobre grupos oprimidos seja só efeito Dunning-Kruger. Talvez, seja só a nossa ignorância que nos faz dar continuidade a estruturas que não fazem sentido pra ninguém. E pra sair dessa, só tem um único caminho: mais humildade sobre o que se pensa, mais interesse sobre o que não se sabe. Mudar sua visão sobre o mundo é o primeiro passo pra mudar o mundo.
* Beta Boechat é mulher, trans e gorda, publicitária, diretora da FALA.agency e voz atuante nas causas LGBTQIAP+ e da diversidade corporal, cofundadora do Movimento Corpo Livre
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